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Algumas hipóteses desesperadas e uma utopia concreta: o SUS Brasil

sus - politicas de saudeApesar das conquistas ao longo de 24 anos, o Sistema Único de Saúde (SUS) está sendo desidratado em virtude de suas próprias contradições e insuficiências.

Estudos avaliativos têm evidenciado que a política de saúde pública teve impacto positivo sobre a mortalidade infantil, protegeu o País da epidemia de Aids, além de cuidar dos portadores e doentes; ampliou o acesso a medicamentos e ao atendimento de urgência. Contudo, a cronicidade do subfinanciamento, a inadequada política de pessoal e os descalabros de gestão e de planejamento têm comprometido a consolidação e, mesmo, a sustentabilidade do sistema.

Outra constatação é a de que o SUS está sendo derrotado no simbólico, ou seja, nos “corações e mentes” dos brasileiros.

Estamos nos desesperando com o emperramento dos serviços públicos e sua baixa sustentabilidade – programas “exitosos” no SUS costumam ter vida curta pela falta de continuidade administrativa, descuido, falta de pessoal etc. Nesse contexto, a tendência é a busca por soluções particulares e um esvaziamento dos movimentos sociais de defesa do SUS.

A terceira observação é a de que não há, no horizonte, nenhum projeto político que se proponha, explicitamente, a enfrentar o conjunto de impasses crônicos que limitam a plena constituição do SUS e do direito à saúde. Os projetos governamentais – e mesmo aqueles de vários movimentos sociais – são focais e parciais, em geral abandonando a pretensão de construção integral e ampla do Sistema Único.

Apesar do caráter inovador de várias medidas de reforma do modelo de gestão já incorporadas ao cotidiano do SUS – gestão participativa, fundos de saúde, colegiados interinstitucionais etc. –, elas não foram potentes para se contrapor ao patrimonialismo, à privatização e ao padrão de iniquidade do Estado brasileiro.

Há, portanto, vários obstáculos à plena constituição do sistema. São tantas as transformações, ainda por fazer, que podemos dizer que será necessário reconstruir um amplo movimento de reforma sanitária capaz de reinventá-lo. Um projeto que somente adquirirá concretude se for construído por amplo movimento social em defesa da democracia e da justiça social. Por isso, este artigo é somente um ensaio, baseado em evidência, mas também na intuição política do autor, cuja proposta precisará ser criticada e repensada para que haja a constituição de um projeto coletivo.

Uma diferença radical na organização do SUS foi o grau de descentralização adotado no País, elegendo o município como núcleo básico organizacional do sistema. O funcionamento sistêmico seria garantido pela atuação integradora das Secretarias de Estado e pelo Ministério da Saúde. Contudo, o resultado desta opção gerou efeitos paradoxais: propiciou a existência de experiências exitosas em municípios com contexto favorável – que serviu para demonstrar que o modelo SUS era possível e efetivo –, mas instalou, também, uma fragmentação do sistema, já que cada município tem autonomia para definir sua própria política de gestão e de atenção à saúde. Essa construção municipal do SUS tem gerado iniquidade e desigualdade, comprometendo a sua sustentabilidade como um todo e mesmo das redes locais.

À dificuldade de integração – em rede – das políticas, programas e serviços dos governos federal, estaduais e municipais, somou-se ainda a antiga fragmentação típica da tradicional saúde pública brasileira, que atuava com programas focais, voltados cada um para um tipo de risco ou de enfermidade, o que foi ampliado ao longo da existência do SUS.

Esse processo de fragmentação, privatização e descentralização comprometeu o funcionamento sistêmico e integrado da política de saúde. Duas das consequências nefastas desse processo foram a precariedade das políticas de pessoal e a inadequação das estratégias de gestão no SUS. Diluiu-se a responsabilidade de Estados e da União, delegando-se aos municípios tarefas impossíveis de serem levadas a cabo em nível local e de maneira isolada. Produziu-se, assim, uma cultura da improvisação, de precariedade e de maltrato em relação aos profissionais de saúde e ao cuidado dos usuários. Infelizmente, esse padrão de simplificação estendeu-se também para a infraestrutura, os equipamentos e o modelo de atenção e de cuidado.

Propostas
Por tudo isso, o SUS necessita de uma ampla reforma administrativa e organizacional. E, com base nas premissas anteriores, gostaria de indicar algumas estratégias para o sistema. Uma utopia possível?

Primeiramente, é preciso compreender que o SUS precisa superar a fragmentação, a privatização e a inadequação da política de pessoal,  tendo como núcleo organizacional as Regiões de Saúde. Com este objetivo, proponho:

Constituir o SUS Brasil: uma autarquia especial integrada pelo Ministério da Saúde, Secretarias de Estado da Saúde e Secretarias Municipais de Saúde. Todos os serviços de saúde de caráter público, bem como contratos e convênios de todos os entes federados, passariam a essa autarquia especial. A autarquia deve ter um modelo organizacional e de gestão próprio e específico, conforme as singularidades e características da área da saúde.

SUS Brasil seria organizado por Regiões de Saúde, que fariam a gestão de uma rede de atenção integral. Todos os serviços públicos teriam um modelo organizacional autárquico, que valeria para atenção básica, redes de atenção, organizações sociais, fundações privadas etc.: o fim da privatização e a invenção de um novo modelo público de organização e de gestão.

Todos os profissionais de saúde que trabalhassem no sistema passariam à gestão da autarquia especial por dois caminhos: optariam livremente por integrar as novas carreiras do SUS Brasil ou seriam cedidos por municípios, Estados e universidades para o efetivo exercício no SUS Brasil. Seriam criadas carreiras multiprofissionais para o sistema nacional, organizadas pelas grandes áreas de cuidado do SUS: atenção básica, vigilância à saúde, urgência e emergência, atenção hospitalar e especializada, e outros agregados a serem definidos. O ingresso seria por concurso por Estado da federação – ou talvez por Região de Saúde? –, havendo possibilidade de progresso por mérito e mobilidade antes de novos concursos. Os servidores já concursados por entes públicos poderiam optar por ingressar na nova carreira como quadro em extinção.

Para evitar a burocratização e limitar o predomínio de interesses privados no SUS Brasil, o sistema de cogestão e de gestão participativa seria ampliado e valorizado. O Conselho Nacional de Saúde e a Comissão Tripartite fariam o planejamento e gestão do sistema nacional, valendo-se de gestores do Ministério da Saúde, Secretarias de Estado da Saúde e Secretarias Municipais de Saúde. O mesmo modelo seria adotado nos Estados e nas regiões de saúde.

Ainda para diminuir a interferência político-partidária, todos os cargos de gestão de serviços e de programas deixariam de ser de livre provimento pelo Poder Executivo e passariam a depender de um processo de seleção interno oferecido aos profissionais do SUS Brasil.

Seria criada a autoridade sanitária e o corpo técnico para as Regiões de Saúde. O secretário regional de Saúde seria indicado pelo Conselho Regional de Saúde, obedecidos pré-requisitos técnico, sanitário e a capacidade de gestão dos candidatos.

Tudo isso para garantir a devida atenção em saúde aos brasileiros, ampliando o financiamento para 8% do PIB, a ser gasto em investimento prioritário para a expansão da Atenção Básica para 80% a 90% dos brasileiros. Teríamos equipe básica de qualidade com médico, enfermeiro e apoio matricial multiprofissional para o conjunto da população. A Atenção Básica não se destina somente à população de baixa renda, trata-se de uma estratégia para resolver 80% dos problemas de saúde, mediante cuidado personalizado e que implique abordagem clínica e preventiva. Para isso, será necessário aumentar a sua qualidade, com melhor infraestrutura e integração com hospitais e serviços especializados. E com a ampliação da liberdade das famílias, garantindo-lhes a possibilidade de escolher a qual equipe se vincular em uma dada região.

Estima-se a necessidade de 200 novos hospitais gerais em regiões carentes. Para construí-los e equipá-los serão necessários R$10 bilhões. O custeio anual exigirá orçamento semelhante. A recuperação e reorganização da precária rede já existente custarão outros R$ 20 bilhões anuais. Haveria ainda que se ampliar o gasto com a Vigilância em Saúde, controlar epidemias, drogas, violência, a um custo de cerca de R$ 5 bilhões/ano.

A proposta está lançada. É preciso debatê-la e aperfeiçoá-la para tornar possível a utopia do SUS Brasil.

Gastão Wagner de Sousa Campos

Professor titular de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp

Referência: Campos, Gastão WS. Algumas hipóteses desesperadas e uma utopia concreta: o SUS Brasil. In; Coletânea 25 anos do SUS; org: Frizzon, Maria Lúcia & Costa, Ana. Brasil, CEBES; 2014.